Vista do rio Tietê em 1905, antes de ser retificado e poluído
Entenda por que os rios de São Paulo são podres
THIAGO OLIVEIRA
Colaboração para o UOL
São Paulo se considera o motor do Brasil. Cidade que não para, terra das oportunidades, uma das cinco maiores metrópoles do mundo. Mas esse desenvolvimento teve um custo. Caro.
São Paulo viabilizou seu progresso sem nenhum planejamento e à custa da destruição de boa parte de seus recursos naturais. Uma das piores consequências disso se materializa na imagem dos canais que cortam a cidade – mortos, nauseabundos, isolados do convívio da população.
Acima, planta de 1905 da cidade de São Paulo mostra os cursos dos rios Tietê, Anhangabaú, Tamanduateí, Pinheiros e seus diversos afluentes. Imagine como a cidade seria diferente caso os rios tivessem um tratamento melhor.
O flagelo dos rios paulistanos começou a partir do adensamento da mancha urbana, na virada do século 19 para o século 20. Os primeiros a terem a situação agravada foram os rios Anhangabaú (sim, ele existe) e Tamanduateí, em torno dos quais a cidade foi fundada e iniciou seu processo de expansão, como ponto de passagem obrigatório do café vindo do interior do Estado em direção ao Porto do Santos.
O Anhangabaú existe
"No último quarto do século 19, o córrego do Anhangabaú já recebia sangue de reses abatidas no matadouro público, em uma quantidade tal que incomodava os moradores", conta o historiador e pesquisador Janes Jorge, autor do livro "Tietê, o rio que a cidade perdeu".
A sujeira a céu aberto não durou muito no Anhangabaú. Para facilitar a ocupação da área – além das óbvias motivações sanitárias –, o ribeirão foi canalizado e, pouco depois, em 1906, definitivamente tapado.
Nessas condições, corre até hoje invisível à população, com pouco de sua história pesquisada. Nascido num trecho entre a Vila Mariana e o Paraíso, passa sob pontos movimentados do centro, como as avenidas São João e Tiradentes, até finalmente desaguar no rio Tamanduateí, nas imediações da Rua 25 de Março.
Do resíduo doméstico ao industrial
A fama dos maus odores se espalhou rapidamente pela região central. Nas primeiras décadas do século 20, outro local importante de confluência – dessa vez entre os rios Tamanduateí e Tietê – também já era alvo de narizes torcidos.
"Aquele ponto era conhecido como 'cagão', em decorrência da alta carga de esgoto. Era uma área a ser evitada pelos moradores que procuravam o rio Tietê, como os praticantes de remo', relata Jorge.
Enquanto a degradação limitou-se ao lançamento de esgoto doméstico, os rios se mantiveram vivos – cabe registrar que, em 1920, segundo censo demográfico da época, a cidade inteira somava apenas 580 mil habitantes, cerca de 18 vezes menos que os 10,8 milhões verificados no último levantamento.
Vista do rio Tamanduateí, entre os bairros da Luz e do Pari, região central de São Paulo, em foto de 1906. Já em 1867, a várzea desse rio recebeu a Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, em torno da qual se fixaram numerosas indústrias, dando início ao ciclo de poluição química
A situação começou a piorar com o aumento do descarte de esgoto químico, proveniente das fábricas instaladas à beira dos canais. Esse tipo de ocorrência banalizou-se primeiramente no Tamanduateí, cuja várzea serviu, já em 1867, à construção da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, em torno da qual se fixaram numerosas indústrias, ABC paulista adentro.
O golpe de misericórdia foi dado na década de 1950, com a construção do pólo petroquímico em Capuava, na divisa entre os municípios de Santo André e Mauá: o volume de poluição já então delineava o rio tal como é hoje – puro esgoto a céu aberto.
Nessa altura de desenvolvimento urbano, o estado crítico se espalhara aos demais cursos d'água de São Paulo. A chegada da metade do século marcou o encerramento definitivo da prática esportiva no rio Tietê, em cujas margens, nos tempos áureos, chegaram a se estabelecer até três clubes de regatas.
Outras atividades comuns à beira do Tietê, como a pesca, a natação e passeios de barco, já haviam sido suspensas fazia algum tempo. Fácil entender o motivo: 20 anos antes, em 1930, já se contabilizava em 150 o número de empresas que descartavam lixo e dejetos químicos diretamente no leito do rio, conforme mencionam os pesquisadores João Emílio Gerodetti e Carlos Cornejo no livro “Lembranças de São Paulo: a capital paulista nos cartões-postais e álbuns de lembranças” (editora Studio Flash, 1999).
Além do esgoto
A poluição causada pelo lançamento de esgoto destratado é apenas um dos fatores que conduziram à completa deformidade dos rios paulistanos. Modificações físicas de toda espécie também foram executadas na primeira metade do século 20 (veja quadro), com o objetivo primordial de garantir a energia necessária ao crescimento da cidade.
- Rio Tietê, na altura do Cebolão, onde encontra o Pinheiros, em dia de enchente em São Paulo
O rio Pinheiros, podado de suas curvas sinuosas e transformado na linha reta que é hoje, teve em seguida seu curso d’água invertido: em vez de correr da nascente ao Tietê, como é seu caminho natural, passou a seguir do Tietê até a represa Billings.
A reversão tinha o objetivo de manter a represa abastecida para que, de lá, a água descesse canalizada por 750 metros, via Serra do Mar, até a usina Henry Borden, em Cubatão.
A poluição do Pinheiros, no entanto, impediu que essa esquemática prosseguisse. Como a Billings também serve ao abastecimento público, uma lei estadual de 1989 proibiu que as águas imundas do rio entrassem em contato com as da represa. Agora, a liberação só é permitida em caso de risco de cheia do Pinheiros.
Várzeas ocupadas
Embora viabilize operações de engenharia dessa envergadura, o processo de retificação implica em um efeito funesto: o aterramento (e a consequente ocupação) do que antes eram as várzeas dos rios – áreas de escape para períodos de muita chuva.
"O rio perde o controle. Toda aquela várzea que deveria ser alagada, está ocupada. A água não tem para onde ir", diz a historiadora Marcia Pazin, gerente de documentação e projetos da Fundação Energia e Saneamento.
O resultado, assinala Pazin, são os episódios vistos recentemente, por exemplo, no Jardim Pantanal – várzea do rio Tietê invadida no fim da década de 1980 e que frequentemente fica debaixo d’água.
"Esse processo explode nas décadas de 1950 e 1960. As obras de combate a enchentes se tornam regulares, mas apenas empurram o problema para regiões cada vez mais afastadas", explica a especialista.
Segundo Pazin, o espalhamento das enchentes oriundas do Tietê traçam uma rota por bairros da Zona Leste:
– Década de 1920: região do Centro até o Brás
– Década de 1960: Mooca
– Décadas de 1970 e 1980: Tatuapé e arredores
– Década de 1990: Aricanduva
– Hoje: região onde está o Jardim Pantanal
– Década de 1960: Mooca
– Décadas de 1970 e 1980: Tatuapé e arredores
– Década de 1990: Aricanduva
– Hoje: região onde está o Jardim Pantanal
Crescimento descontrolado
A historiadora acredita que obras de transformação na geografia dos rios não são necessariamente negativas – e cita como exemplo os Estados Unidos, precursores em ações dessa natureza, com o objetivo do aproveitamento múltiplo dos canais (para navegação, abastecimento, turismo, geração de energia).
"O grande problema é a dimensão dessas transformações", afirma Márcia Pazin. "É preciso haver um estudo de viabilidade muito grande e complexo de ser executado, quando se está trabalhando com um regime que sofre influência de tantas questões a sua volta".
- Vista aérea do rio Tietê e Marginais na altura do Anhembi. As margens de concreto são gabiões construídos nas obras de ampliação da calha do rio para reduzir o problema de enchentes.
No caso de São Paulo, ela diz, qualquer estudo feito no começo do século 20 teria sido invalidado pela explosão demográfica que aconteceu nas décadas seguintes. "É difícil fazer um planejamento de longo prazo que garanta que não vai haver um excedente tanto de população como de resíduos".
Na opinião do historiador Janes Jorge, é natural que tenha havido uma alteração radical nos rios de São Paulo para que a metrópole fosse erguida. "Contudo, existia a possibilidade de que tais transformações não fossem apenas degradação em grau intenso, como efetivamente ocorreu, afastando completamente os paulistanos de seus cursos d’água, com raras exceções".
Soluções em vista
Projetos de recuperação dos rios existem desde que a poluição tomou conta das águas. No Tietê, por exemplo, houve propostas óbvias, como a construção de estações de tratamento de esgoto – ideia estudada já na década de 1950 –, até soluções altamente questionáveis, como um projeto da década de 1970 (devidamente arquivado) que pretendia direcionar os resíduos coletados na cidade para uma enorme lagoa, na região da Serra da Cantareira.
Entre as medidas apresentadas, porém, nenhuma ganhou tanto destaque como o Projeto Tietê, criado em 1992 pelo Governo do Estado após uma atípica mobilização popular que reuniu mais de 1,2 milhão de assinaturas em prol da despoluição do rio.
Projeto Tietê
Respirava-se, à época, os efeitos da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco-92), realizada no Rio Janeiro. Como grande exemplo, mencionava-se a revitalização do rio Tâmisa, em Londres, que acabara de ser concluída.
Oficialmente, o Projeto Tietê está em ação até hoje. Nesses 18 anos, consumiu, em duas etapas, algo próximo de US$ 1,6 bilhão – e deve absorver outros US$ 1,05 bilhão até 2015, numa terceira etapa de obras.
De acordo com a Sabesp, responsável pelo empreendimento e pelos números que o envolvem, os esforços se concentram em reduzir a principal causa de poluição no Tietê, que é o lançamento de esgoto destratado diretamente no leito.
Depende de nós
Para isso, descreve a empresa, investiu-se basicamente no aumento da coleta (constituída de um vasto sistema que permite o encaminhamento dos efluentes para tratamento), além da ampliação da capacidade das estações que fazem a limpeza das águas antes de serem despejadas novamente no rio.
Em paralelo às atividades do Projeto Tietê, que têm o objetivo de diminuir a incidência de novos poluentes, existem outras ações em andamento, também nos demais canais da cidade, com a função de limpar os resíduos já existentes.
Uma dessas medidas são os constantes trabalhos de desassoreamento (retirada da sujeira do fundo do leito, para melhorar a vazão). Outra é o processo conhecido como flotação, a partir do qual são injetadas bolhas de oxigênio na água, de modo que parte da poluição bóie e possa ser levada a uma estação de tratamento.
Contra todas as tentativas do recuperação dos rios, no entanto, pesa uma estatística aterradora informada pela Sabesp: de 30 a 35% da poluição do Tietê e do Pinheiros vem do lixo que as pessoas jogam nas ruas. Pelo que se conclui que nenhuma providência do poder público trará a revitalização plena dos rios de São Paulo enquanto persistir a boçal incivilidade de uma parte de sua população.
Fonte: CASA E IMÓVEIS/UOL
Parabéns belo artigo!!!
ResponderExcluirBelíssimo Texto,muito esclarecedor..
ResponderExcluirPasso todos os dias em frente ao Rio Tietê. Meu coração aperta e dói ao saber que um dia ele foi um rio.
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