quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

SOLUÇÕES PARA MINIMIZAR TRAGÉDIAS EM NOSSAS COMUNIDADES


Associação Brasileira de Mecânica dos Solos e Engenharia Geotécnica


Tragédia fluminense

A tragédia que se abateu sobre a Região Serrana do Rio de Janeiro não é um caso isolado ou fortuito. Eventos semelhantes sempre ocorreram na Serra do Mar, que se estende do Sul da Bahia até Santa Catarina. Há inúmeros exemplos históricos. Destacamos, por exemplo, os ocorridos em 1928, 1947 e 1956 nos morros de Santos-SP. Em 1966, 1988, 1996 e 2009 fenômenos idênticos abateram-se sobre a cidade do Rio de Janeiro e, em 1974 e 2008, sobre o estado de Santa Catarina. Tragédias assim provocaram incalculáveis danos econômicos e ceifaram milhares de vidas.

O mecanismo desses deslizamentos segue sempre um padrão conhecido e anunciado, qual seja, a saturação do solo por chuvas contínuas, seguida por curtos períodos de intensa precipitação pluviométrica, causando inundações e os movimentos de massas conhecidos como corridas de detritos e lama ou avalanches.

Fatores como a inclinação dos terrenos, a ocupação, a geologia e a hidrologia são outros condicionantes, cuja ação combinada deflagra o evento, que adquire características de catástrofe e configura o estado de calamidade pública. Surgem duas questões. Temos capacidade para prever a ocorrência desses eventos?  O que fazer para evitar ou minimizar as perdas deles decorrentes?

Procurando contribuir com o debate público na busca de respostas a tais perguntas, a ABMS esteve presente, através do seu quadro de associados, em quase todas as tragédias geotécnicas. Em decorrência dessa participação ativa e direta, nossa entidade produziu farta documentação técnica e produziu diversos documentos dirigidos às autoridades. Exemplo nessa linha é a Carta de Joinville, em que a ABMS analisou os deslizamentos em Santa Catarina e propôs medidas para mitigar os riscos e reduzir drasticamente o número de vidas perdidas.

A ABMS também encaminhou, em conjunto com a ABGE, no ano de 2010, a “Carta Aberta às Autoridades”, com o título “Para que em 2011 as tragédias não se repitam”. No documento, as duas entidades sugerem a implantação nacional e regional de órgãos geotécnicos semelhantes à Fundação Geo-Rio, compostos por quadros técnicos especializados.

Infelizmente, no Brasil, a indignação e a vontade de adotar providências saneadoras se perdem no caminho antes de resultar em ações efetivas. O impacto de cada tragédia tende a cair logo no esquecimento. Soma-se a isso a falta de planejamento urbano e a desordenada ocupação das encostas. O resultado é desalentador e prenuncia novas tragédias.

Não é razoável esperar mais tempo para tomar as providências que todos julgamos necessárias. É premente a necessidade da implementação de sistemas de alerta para a população, combinada com a adoçāo de programas educacionais.

Tais sistemas devem se basear em mapas de riscos geotécnicos, elaborados por equipes multidisciplinares. Precisam prever a transferência das comunidades assentes em áreas com grau de risco alto para regiões seguras. Ou seja, é necessário planejamento urbano e a sua rigorosa execução.

O que se observa, no entanto, é o oposto disso. Prevalecem o desrespeito ao técnico, a falta de investimento e o descaso político. Para superar este estado de coisas, torna-se imprescindível despolitizar e capacitar a defesa civil, colocando os conhecimentos técnicos a serviço da população e da sociedade.

Não podemos atribuir a causa das mortes às chuvas, pois somos capazes de mapear as áreas de risco e de prever os temporais. No caso mais recente, houve o alerta feito pelo INMET de que uma chuva excepcional se aproximava da Região Serrana do Estado do Rio.

Tal informação não foi suficiente, no entanto, para deflagrar qualquer medida de evacuação – mesmo porque não havia nenhum sistema de alerta na região. Fica a questão: a responsabilidade pela tragédia é da natureza, das autoridades ou dos cidadãos?  Possivelmente de todos.

Estas chuvas, que ocorrem aleatoriamente ao longo da região citada, têm período de recorrência alto se consideradas para um mesmo ponto. No entanto, considerando a extensa área da Serra do Mar, elas podem ocorrer com período de recorrência mais baixo, até mesmo anualmente e em mais de um ponto.

Além disso, as precipitações podem ocorrer em regiões habitadas e com infraestrutura. Ou podem cair em locais virgens, onde não vão provocar vítimas, nem a destruição de construções, permanecendo assim ‘ocultas’ da mídia e da populaçāo.
O que é possível observar é que a “chuva destrutiva”, com precipitação extremamente concentrada, cobre uma faixa relativamente estreita, da ordem de poucos quilômetros e percorre uma trajetória extensa, de dezenas de quilômetros, como a distância entre duas ou mais cidades.

Chuva de 1981

Em 1981, uma chuva excepcional percorreu uma posição muito semelhante à atual, deslocada apenas um pouco mais ao sul, cortando as estradas de ligação do Rio de Janeiro com Nova Friburgo, Petrópolis e Teresópolis, nesta ultima segmentando a estrada em vários trechos e levando a vida de 14 pessoas que percorriam este trecho da rodovia durante a chuva.

As chuvas de 1981 foram esquecidas. A tendência humana de esquecer as tragédias soma-se à tendência da própria natureza em ocultar as cicatrizes dos deslizamentos. A natureza muitas vezes recompõe rapidamente as marcas dos escorregamentos, de modo particular onde estas chuvas se precipitam, pois o clima é favorável. 

No ano seguinte ao fato, já fica difícil identificar todos os pontos de escorregamento, mesmo para um especialista. Para um leigo ou para um administrador público, o assunto é esquecido ou, na melhor hipótese, é relegado a segundo plano. A população, em consequência, continua vulnerável.

Entre dezembro e março, estas chuvas excepcionais interceptam com certa frequência as áreas urbanizadas. Acredita-se que isso aconteça em média a cada 5 anos. Com o fenômeno das mudanças climáticas, é lícito supor que se reduza o intervalo de tempo entre essas chuvas excepcionais que afetam áreas urbanizadas.

Deslizamentos ao longo da história


Vale aqui recuperar alguns escorregamentos observados no país nas últimas décadas. Apresentamos a seguir uma pequena lista, incompleta, certamente: 

Morros de Santos 1928 – 1947 – 1956
•Sul de Minas – 1948
•Rio de Janeiro – 1966
•Serra da Araras – jan 1967
•Serra de Caraguatatuba – mar 1967
•Tubarão-SC – 1974
•Ouro Preto e Monlevade-MG  – 1979
•Estradas Rio-Teresópolis, Rio-Santos e Rio-Petrópolis – 1981
•Cubatão - 1985
•Rio de Janeiro e Petrópolis – 1988
•Cubatão - 1994
•Rio de Janeiro – Quitite – 1996
•Via Anchieta - 2000
•Santa Catarina - 2008
•Angra dos Reis, Rio de Janeiro e Niterói – dez 2009
•Petrópolis-Teresópolis-Friburgo – 2011

A lista totaliza 18 eventos em 83 anos, dando suporte à frequência de ocorrência citada acima.

É assustador imaginar o que poderia ocorrer caso um fenômeno climático como o ocorrido na Região Serrana afete, por exemplo, a Rocinha e o Complexo do Alemão, favelas densamente ocupadas na cidade do Rio de Janeiro, que estão expostas ao mesmo fenômeno ocorrido em Friburgo. As vítimas seriam contadas, possivelmente, aos milhares.

Diante de tudo isso, o que fazer?  Como a ABMS, que reúne  especialistas em estabilidade de encostas, pode se posicionar? Temos conhecimento para propor e orientar planos de ações. Mas seremos ouvidos?

Chuvas excepcionais destrutivas são simples elementos naturais da dinâmica de transformação da superfície do planeta, mais ativa na região da serra do Mar do que em outras regiões, devido a sua localização geográfica. Ver foto da situação pós-chuva na Serra das Araras (1966) e de Friburgo (2011). 

Soluções que podem minimizar os problemas

1 – Conhecimento dos locais – Mapeamento de risco
O primeiro passo é saber onde estão os locais suscetíveis a escorregamentos de encostas e enchentes, com a respectiva classificação de risco. Esta classificação deve caracterizar locais que não devem ser ocupados, outros que podem ser ocupados com restrições e deve ainda definir áreas que podem ser ocupadas com segurança.
Os responsáveis pela administração pública já estão se conscientizando da importância destes mapeamentos e devemos pressionar para que sejam feitos com urgência.  

2 – Dados hidrológicos – Definição das chuvas com poder destrutivo e comportamento dos rios
A rede de coleta de dados hidrológicos e fluviais deve ser aumentada e modernizada, com sistemas automáticos e com maior numero de pontos de coleta de informações. Os dados devem também estar sempre disponíveis. É recomendável que marcos de nível de água de cheias máximas previstas sejam materializados nas margens dos rios, de forma a serem visualizados pela população leiga. Estes marcos também facilitariam a fiscalização das áreas de ocupação urbana.

3 -  Dados metereológicos – informações seguras, rápidas e disponíveis de forma transparente
O poder público também já está se conscientizando da importância da implantação e operação de radares metereológicos.  Quanto maior a antecedência e precisão de dados, mais eficientes serão as medidas a serem tomadas.

4 – Preservação da memória
Há uma tendência humana de apagar da memória fatos desagradáveis. Devemos seguir o exemplo de Hiroshima, dos campos de concentração da segunda guerra, ou do Muro de Berlim, com seus museus e locais preservados, para que sempre sejam sempre lembrados e para que todas as gerações possam saber o que houve e acreditar no que, com o passar dos anos, parece nāo ter acontecido.
Podemos propor a criação de um Museu Geológico e Geotécnico, com fotos, filmes, depoimentos e maquetes dos escorregamentos,  desabamentos e alagamentos.

5 – Sistemas de alerta
Sistemas de alerta deveriam existir em todas as cidades e comunidades localizadas na região da Serra do Mar. Existem exemplos no Japão para terremotos, nas Filipinas, para tsunamis, e até no Brasil, em Angra dos Reis, pela proximidade com a usina nuclear. A ponte Rio-Niterói é outro exemplo: ela é fechada em condições inseguras de tráfego devido ao clima.
Os sistemas de alerta podem ser baratos e fáceis de implantar. É preciso apenas vontade política e a montagem de um sistema de informações rápidas e seguras. Exemplo bem sucedido foi implantado e operado durante um certo tempo pelo DNER (Departamento Nacional de Estradas de Rodagem), na rodovia Rio-Teresópolis, após as chuvas de dezembro de 1981. Dois pluviômetros foram instalados, um na parte baixa da serra e outro, na parte alta. Havendo registro de 10 mm em 15 minutos ou mais, o segmento da estrada era fechado ao trânsito pela Polícia Federal. Cessada a chuva intensa, o trecho era inspecionado pela polícia e liberado em condições seguras de trânsito.

6 – Apoio da mídia – TV, rádios, internet, jornais
A participação os órgãos de comunicação é fundamental para a eficiência da divulgação das informações dos sistemas de alerta. Poderia ser mostrado, por exemplo, um ícone de uma nuvem com um raio numa das laterais da tela das TVs, tal como se faz hoje com a logomarca das emissoras. Este ícone teria cor amarela, como alerta de chuva forte, e vermelha, no caso de chuvas excepcionais destrutivas, dando tempo para a população se mobilizar. Intervenções curtas com maiores esclarecimentos, notícias em rádios e internet (e-mail, sites, twitter) complementariam as informações.

7 – Legislação adequada 
Os administradores e responsáveis pelo poder púbico devem promover leis adequadas de ocupação urbana baseadas em critérios técnicos e zelar pelo seu cumprimento.

8 – Educação da população 
Incluir matéria específica nas escolas. Deve haver treinamento individual e coletivo das populações em áreas de risco, de forma a permitir uma atuação em grupo nos momentos de necessidade, com definição de rotas de fuga previamente fixadas, assim como locais de abrigo.

9 – Plano de contingência e coordenação da defesa civil

A defesa civil deve ter um plano de contingência preparado para entrar em vigor imediatamente. Não pode ser um órgão politizado e sim profissional, com plano de carreira.

10 – Órgão de Geotecnia em nível estadual e nacional 
Existem vários estudos de mapeamento de risco, vários radares metereológicos, vários estudos de hidrológicos, técnicos de alta competência estudando e publicando trabalhos sobre o assunto. Falta entretanto um órgão ordenador e disciplinador destas informações para coordenar atividades com foco adequado e interfacear com autoridades públicas.
Um exemplo é a Geo-Rio, ligado à Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, que inspeciona locais, define conceitos, aprova projetos, especifica e contrata serviços especializados em contenção de encostas. Em outros estados não há este apoio às cidades. 
No Rio de Janeiro, o DRM (Departamento de Recursos Minerais), que teve a incumbência de orientar trabalhos nesta última tragédia, embora com técnicos competentes e experientes, tem escassos recursos humanos e  sem condições de agregar o volume de técnicos necessários por falta de diretriz e verbas.
Os associados da ABMS têm um vasto campo de trabalho profissional para atuação na área de redução dos efeitos catastróficos ocasionados por estas chuvas excepcionais.
A criação de um cenário favorável para uma gestão adequada e a atuação dos técnicos especializados são metas da ABMS e da atual Diretoria.

11- Revisão da teoria e da prática
Tragédias dão oportunidade à reflexão, à análise do que deu errado.  Já se falou das carências e deficiências de ações na gestão das questões públicas. Mas tragédias geotécnicas merecem reflexão técnica e análise científica. Muito já se aprendeu a partir de acidentes e a história da geotecnia está repleta de casos de insucessos, de variáveis graus, que renderam importantes avanços tecnológicos. Casos históricos clássicos como o de Fort Peck Dam, Aberfan Spoil Heap Failure,Teton Dam, Torre de Pisa, lembram-nos de importantes ensinamentos. 
Quais serão os ensinamentos que acumularemos com os eventos na Serra Fluminense? Havia áreas com mapeamento de risco concluído ou com cartografia geotécnica detalhada? O que indicavam estes trabalhos? Os prognósticos foram confirmados ou não? Por quê? As incríveis corridas de lama observadas eram eventos antecipados por estes estudos? Será que já dispomos de ferramental técnico adequado para previsões quantitativas destes fenômenos? Será que os critérios que temos usados em cartografia de risco cobrem todos os eventos testemunhados na Serra Fluminense? A ABMS deve mostrar à Sociedade que estas questões são importantes e que suas respostas poderão ajudá-la a chegar num futuro sem tragédias geotécnicas.
Diretoria ABMS
Fevereiro/2011

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