domingo, 29 de janeiro de 2012

CARTA ABERTA AOS COMITÊS DE BACIA DO BRASIL - APOLO H. LISBOA

O médico Apolo Heringer Lisboa, professor da Fac. de Medicina da UFMG
criador e coordenador do Projeto Manuelzão
 

2006 - CARTA ABERTA aos Comitês de Bacias

Aliança RECOs
Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras


“ ....Assim, nossa proposta é que possamos, a partir de agora, tendo o  Fórum Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas e os Fóruns Estaduais de Comitês como precursores, desenvolver ações de  implementação da convergência dos Sistemas de Meio Ambiente (lei federal 6938/81) e de Recursos Hídricos (lei federal 9433/97). Sempre com foco na qualidade ambiental, pois é inconcebível pensar meio ambiente separado das águas. Construir um processo de Licenciamento e Outorga integrado com a Gestão das Águas, pode agilizar todo processo, uma demanda justa dos empreendedores, mas com base na verdade da qualidade das águas, que tem utilidade econômica geral. Assim, realizados simultaneamente e solidariamente, a Licença Prévia seria uma decisão quase completa, do ponto de vista ambiental, desde que já trouxesse, com base no EIA-RIMA e no respeito ao Enquadramento, eventuais medidas mitigadoras e compensatórias previstas...”


Publicado na revista Águas do Brasil, da REBOB, Ano 1, Número 3, p. 4 e 5. Edição 2011.

CARTA ABERTA
Aos Comitês de Bacia, seus membros e à sociedade em geral

O relevante papel da Lei Federal 9433/97, que possibilitou a criação do SNGRH Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e o desenvolvimento e implantação dos Comites de Bacias Hidrográficas, é um marco na história da democracia no Brasil. A possibilidade da gestão das águas ser compartilhada, descentralizada e baseada na territorialidade da bacia hidrográfica já seria um marco. Mas tudo isso ser realizado de forma participativa por três segmentos sociais conflitantes em termos de visão-de-mundo, e de usos da água, tornou extremamente rica essa experiência na construção democrática. Estamos aprendendo a conviver e dialogar com atores que pensam diferente de nós, mas que têm os mesmos direitos e a mesma legitimidade.

Podemos dizer que os Comitês de Bacia são instâncias políticas de gestão de conflitos sobre o uso diferenciado e compartilhado das águas, uma espécie de parlamento. Ao mesmo tempo em que externamos as nossas diferenças, torna-se necessário buscar convergências e um modus vivendi que permita fazer a gestão sustentável das águas.

Essa sustentabilidade, prevista inclusive em nossas leis, coloca inequivocadamente como eixo central da gestão dos Comitês de Bacia a questão da qualidade ambiental, que as águas refletem fidedignamente. A qualidade ambiental é do interesse geral da população presente e futura, das indústrias, da agricultura e da produção animal. Não é por acaso que a Constituição brasileira de 1988 trata o meio ambiente ecologicamente equilibrado como “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”. Também não é por acaso, mas sim pela superlativa importância dos bens e interesses que ela visa proteger, que impõe ao Poder Público e à coletividade como um todo (atores sociais diversos, organizações não governamentais, centros de pesquisa e universidades, empresas, etc.) o dever de defender e preservar os diversos aspectos e elementos constituintes do bem ambiental para as presentes e futuras gerações (art. 225, caput).

Todavia, isso raramente é internalizado pelas partes envolvidas e pelas políticas públicas e neste cenário, cabe a nós, membros e participantes dos Colegiados Comitês de Bacia, aprimorar o processo de aplicação das leis, por atores sociais conscientes e motivados. A política dos Comitês de Bacia, para servir ao meio ambiente com foco nas águas, deve buscar convergências e explicitar conteúdos para a sociedade, deve buscar consensos, estabelecer metas e delegar  responsabilidades.

Assim, a mobilização social e o Enquadramento das águas em classes de qualidade, passam a ser a função de primeira ordem da política dos Comitês de Bacia.

Um Comitê de Bacia não é composto por pessoas descompromissadas; a maioria presta serviços sem fins econômicos. A emoção faz parte do nosso arsenal, mas o equilíbrio emocional também se exerce com base em estratégias competentes e explicitadas com toda transparência.

Os Comitês de Bacia, hoje consolidados como a base de nosso Sistema, só foram constituídos para permitir água para todos os seres vivos, em todos os tempos, água de qualidade em todas as ordens de rios e lagos. E não há água de qualidade sem respeito ao meio ambiente, incluindo aqui o solo, o ar, a flora e a fauna. O ser humano é inseparável do meio ambiente, e a gestão eficiente e eficaz se faz quando a vida de todas as espécies é respeitada, inclusive e sobretudo a dos peixes. Os peixes não são somente um bioindicador, são um símbolo da vida de qualidade ambiental no planeta Terra.

A política nos Comitês de Bacia não tem a lógica das disputas eleitorais através de candidaturas, partidos e do sistema de fazer oposição sistemática. Isso está totalmente superado a partir do momento em que se busca a solução compartilhada dos conflitos entre os diversos usos das águas para todos e para as demais espécies. É mais próximo da gestão de um condomínio. E principalmente porque o território de bacia hidrográfica transcende a divisão político-administrativa do país e internacional. A lógica é outra e carrega a ideia de gestão da Terra em benefício de nossas famílias, das futuras gerações e de todos os seres vivos.

Precisamos ter um ambiente respeitoso e despolarizado para que todos possam expor de forma tranquila e racional, num primeiro momento, suas propostas, que revelam visões-de-mundo diferenciadas. E, ao final desse processo, após amplamente debatido pelos mais de 180 Comitês de Bacia hoje implantados em aproximadamente 50% de nosso território, este debate culmine e se firme no plenário do Fórum Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas onde se possa aprovar Deliberações que devem ser executadas e respeitadas. A construção desse processo é que vai garantir um resultado positivo. Não se trata de uma questão pessoal ou de regionalismo. Em vez de questões muito específicas, localizadas e não raramente secundárias, hoje não temos dúvida de que está em jogo a defesa do sistema nacional de gestão das águas no que ele tem de mais importante: sua defesa, seu fortalecimento e seu aperfeiçoamento.

Assim, nossa proposta é que possamos, a partir de agora, tendo o  Fórum Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas e os Fóruns Estaduais de Comitês como precursores, desenvolver ações de  implementação da convergência dos Sistemas de Meio Ambiente (lei federal 6938/81) e de Recursos Hídricos (lei federal 9433/97). Sempre com foco na qualidade ambiental, pois é inconcebível pensar meio ambiente separado das águas. Construir um processo de Licenciamento e Outorga integrado com a Gestão das Águas, pode agilizar todo processo, uma demanda justa dos empreendedores, mas com base na verdade da qualidade das águas, que tem utilidade econômica geral. Assim, realizados simultaneamente e solidariamente, a Licença Prévia seria uma decisão quase completa, do ponto de vista ambiental, desde que já trouxesse, com base no EIA-RIMA e no respeito ao Enquadramento, eventuais medidas mitigadoras e compensatórias previstas. O interesse nosso é que se possa aquilatar o impacto de múltiplos empreendimentos em cada parte dos rios, monitorando seus efeitos sinérgicos e cumulativos e garantindo o respeito aos múltiplos usos demandados sobre as águas.

A própria Lei da política agrícola, lei federal 8.171/1991 diz no Artigo 20: "As bacias hidrográficas constituem-se em unidades básicas de planejamento do uso, da conservação e da recuperação dos recursos naturais". Essa lei anterior à 9433 embasa discussões envolvendo a conservação de ecossistemas e da circulação hídrica, relacionando-a ao modo pelo qual a agricultura deveria ser praticada no território do País. A lei da política agrícola tem, além disso, outros preceitos muito interessantes para fundamentar discussões ambientais e tem enorme atualidade no debate político nacional. Do mesmo modo, não é correto descontextualizar as águas dos sistemas naturais em que elas ocorrem. O fato de “o espelho d’água mostrar nossa cara”, ou seja, nossa mentalidade, torna essa premissa um imperativo metodológico para o conjunto das ações dos dois sistemas.

Para tanto, passa a ser essencial e primordial estabelecer metas e colocar na ponta do debate as seguintes premissas:

a) Desenvolvimento dos Planos de Bacia por todos os Comitês de Bacia já implantados no país.

b) Construção de processo de Enquadramento dos nossos rios pelos Comitês de Bacia  tendo como base as especificidades de cada bacia hidrográfica, o  uso múltiplo das águas e o respeito à biodiversidade existente.

c) Amplificar o debate sobre os critérios de outorga e licenciamento como instrumentos de gestão ágil, mas com base sempre na preservação da qualidade de nossas águas.

Assim definido, após os necessários debates e discussões sempre na busca do consenso, os Comitês de Bacias Hidrográficas podem provocar uma deliberação que poderá mudar o futuro das águas e do meio ambiente no Brasil.

Caberá, então, ao Estado brasileiro, em todas as suas instâncias, garantir aos dois Sistemas o mesmo poder e as mesmas condições de infra-estrutura para criar e implementar, desde já, esse funcionamento integrado com base no diálogo e nos instrumentos de gestão previstos em lei.

Apolo Heringer Lisboa / 28-08-2011

(Este texto acolheu sugestões do coordenador geral do Fórum Nacional de Comitês de bacias hidrográficas e presidente da Rede Brasil de Organismos de Bacia – REBOB, Lupércio Ziroldo Antonio e do coordenador do Fórum Mineiro de Comitês de bacias hidrográficas, Walter Shimizu).

"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma  do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos  mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos  ficado, para sempre, à margem de nós mesmos". Fernando Pessoa

ENVIADO PELA COLABORADORA PROFa. AMYRA EL KHALILI - ALIANÇA RECOS


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