terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

ENTREVISTA REVISTA GEA - A IMPORTÂNCIA DOS BIOSSISTEMAS INTEGRADOS

Construção civil

Biossistemas Integrados: transformando esgoto em energia, vida e beleza

Escrito por Gui Castagna — Publicado em 04/02/2009

Versão completa matéria publicada na ùltima edição da Revista Gea, publicado aqui por meio de uma parceria de troca de conteúdo.

Enquanto nossos míopes governantes celebram a descoberta de novas reservas de petróleo no litoral, e multinacionais articulam lobbys bilionários para aprovação do plantio de alimentos transgênicos e para construção de usinas nucleares, uma onda de projetos verdadeiramente sustentáveis transformam esgoto e “lixo”orgânico em energia, adubo e alimento. Nesse novo caminho destaca-se O Instituto Ambiental (OIA), ONG sediada em Petrópolis (RJ) com equipes na Bahia e em São Paulo.

O OIA atua na pesquisa, aplicação e difusão dos biossistemas integrados - sistemas biológicos multifuncionais que realizam o tratamento de efluentes de forma simples e ecológica, com baixo custo e baixo consumo de energia, além de promover funções positivas durante o processo.

Nosso entrevistado acompanha o OIA desde sua fundação, em 1992, quando o OIA participou de um projeto local de biossistemas, com a participação dos laureados José Lutzenberger, o “Lutz”, do Professor George Chan, da Fundação ZERI, um dos responsáveis pela interpretação moderna dos biossistemas, e do Professor Michael Braumgarten, da Universidade de Hamburgo, Alemanha. Filósofo por formação e educador comunitário por excelência, Valmir Fachini falou à Revista Gea sobre seu trabalho e a importância dos biossistemas.

A IMPORTÂNCIA DOS BIOSSISTEMAS INTEGRADOS

Revista GEA: O que são e como funcionam os biossistemas integrados? De que forma eles podem colaborar na despoluição dos rios?

Fachini: Os biossistemas integrados são um conjunto de equipamentos implantados que tentam imitar os ciclos sustentáveis da natureza e que reproduzem os grandes reinos: animal, vegetal, mineral, e moneras1. Os biossistemas fazem com que os resíduos dos processos humanos de produção percam seu potencial poluidor ao longo das diferentes etapas de tratamento, produzem energia a partir da biomassa disponível, e reciclam nutrientes para reaproveitamento na produção de vegetais e na recuperação de áreas degradadas.

Em geral os biossistemas aplicados ao tratamento de dejetos humanos iniciam pela remoção do lodo. Em alguns projetos o lodo segue direto para biodigestores2 que o transformam em energia, e noutros segue para compostagem e vermicompostagem (minhocário), para produção de adubo natural. Em seguida a água segue por tanques de algas, que auxiliam na oxigenação do efluente, passam por zonas de raízes que removem parte dos nutrientes, em particular nitrogênio e fósforo. Onde existem áreas disponíveis, incluem-se tanques para criação de peixes e aves aquáticas, aumentando a produção de proteína animal. No final utilizamos plantas macrófitas3, que fazem uma excelente absorção adicional de nutrientes, e remoção de patógenos, o que acontece em virtude da alta concentração bacteriana formada nas raízes das plantas.

A grande disponibilidade de nutrientes permite o rápido crescimento das plantas, que são transformadas no final em energia, ração animal, ou adubo, utilizados na produção de alimentos e na recuperação de áreas degradadas. Já o efluente tratado é disponibilizado com baixos níveis de nutrientes, podendo ser retornado ao ambiente seja na forma de irrigação, infiltração ou mesmo diretamente a um rio, contribuindo assim para sua despoluição.

Revista GEA: Quais os princípios, objetivos, e vantagens da implantação de biossistemas integrados?

Fachini: Respeitar ao máximo os ciclos naturais, cuidar das pessoas e do ambiente através da reciclagem de nutrientes, produção de energia renovável e da reeducação ambiental. Entre os objetivos principais está a difusão e a replicação de biossistemas integrados com capacitação de profissionais em cada região onde o OIA tiver atuação. Pesquisar através de parcerias com instituições acadêmicas, setores publico e privado, novas soluções que venham aprimorar cada vez mais os aspectos técnicos e otimizar os benefícios. As principais vantagens são a melhoria da qualidade de vida do ambiente e das pessoas que nele habitam, a qualidade da água devolvida aos rios, lagos e mar em condições de balneabilidade com geração de trabalho e renda e educação ambiental.

Revista GEA: Tendo como pano de fundo os objetivos de recuperação sócio-ambiental de áreas degradadas, como são definidas as etapas de cada biossistema?

Fachini: Resolver o problema do esgoto é uma forma da comunidade iniciar outros processos de participação cidadã. Depois de constatada a necessidade, os órgãos que devem participar são acionados, como prefeituras, companhias de água e esgoto e, se envolver pesquisa, as universidades locais. Depois dos orçamentos aprovados, se definem as equipes de trabalho, sempre incluindo o pessoal local. Isto é fundamental para a posterior operacionalização do biossistema.

Revista GEA: Seguindo no tema recuperação de áreas degradadas, como se dá o estabelecimento dos biossistemas junto às comunidades carentes ou tradicionais?

Fachini: A escolha das comunidades é feita em vista das necessidades locais. Quando a solicitação parte de uma comunidade, buscamos parcerias para implantar o projeto. Os moradores participam das discussões desde o inicio, depois elegem quem vai atuar com trabalho remunerado na fase de implantação, e posteriormente decidem quem vai operar o sistema. O trabalho de educação ambiental deve ser contínuo em todas as etapas de implantação, seguindo durante a operação do projeto. Quando há produção, é possível que o operador execute suas tarefas em troca da produção. Assim o projeto torna-se sustentável também na operação. Em projetos pequenos a família que cede a área para implantação do sistema depois se beneficia pelo uso do biogás, por exemplo. Quando o projeto está em áreas públicas, sempre que possível, o biogás é destinado para um equipamento comunitário como uma escola ou creche.

Fogão em escola rural na Nicarágua usando biogás

Revista GEA: De que forma os biossistemas podem gerar um efeito positivo em ambientes socialmente degradados?

Fachini: A exuberância da natureza por si só ajuda a recuperar os ambientes socialmente degradados. As comunidades empobrecidas em geral têm dificuldades no início em aceitar que áreas sejam destinadas ao saneamento porque percebem a carência habitacional e de trabalho como prioridades. Mas depois que um biossistema integrado entra em funcionamento ela muda esta visão, e passa a compreender que uma área verde, com lagos e criações fazem parte das necessidades mais gerais e garante equilíbrio social antes desconhecidos. Na maioria das comunidades, os biossistemas passam a ser o local de levar os visitantes dos moradores locais. É onde fazem um passeio no final do dia ou no final da semana. Os pais gostam de levar os filhos para conhecer. De fato todos estamos reaprendendo a conviver em harmonia com o ambiente e tentando deixar de lutar contra ele. A luta contra o ambiente pela sobrevivência ou para acumulação privada, só pode gerar cada dia mais desequilíbrio e degradação.

Tanque de peixes em projeto de biossistema em Petrópolis/RJ

Revista GEA: Como a qualidade final do efluente tratado pelos biossistemas se compara com sistemas convencionais de tratamento?

Fachini: Esta é uma comparação que não gostamos muito de fazer porque parece que estamos apregoando que somos melhores que outros. Mas o que de fato incentivamos é que o saneamento ambiental seja visto como prioridade, faça parte da infra-estrutura de qualquer novo empreendimento, e não como mais uma obrigação. É comum ver pessoas investindo milhões em suas propriedades e depreciando a necessidade de sanear adequadamente seu ambiente e mal fazem um sumidouro. Depois reclamam que o rio esta poluído, que a companhia cobra caro pelo serviço de saneamento, mas podem fazer mais para melhorar tudo isso. A grande vantagem dos biossistemas sobre os sistemas convencionais é, por um lado, o tratamento local mais próximo possível da sua origem minimizando custos, a reciclagem de nutrientes que possibilitam o reuso dos mesmos na propriedade, ou em seu entorno, e o aproveitamento energético na forma de calor para cozinhar e aquecer água. Em áreas de produção agrícola onde os resíduos orgânicos são mais abundantes a produção de eletricidade é um excelente benefício. Em resumo, a descentralização dos sistemas de saneamento são o principal beneficio. Quando é possível implantar todas as fases de um biossistema, o efluente final chega a mais de 95% de remoção para todos os parâmetros, mas isto se pode atingir nos demais sistemas. O mais importante é o reuso descentralizado dos benefícios.

Revista GEA: Ouvimos dizer que se o volume de gás produzido por sistemas descentralizados em toda a China fosse reunido, ele geraria o equivalente à produção de cinco usinas de Itaipu. Este número faz sentido?

Fachini: Faz sim. Eles possuem hoje mais de 11 milhões de biodigestores instalados, e se considerarmos uma produção mínima de 1 m3 por família são 11 milhões de m3 dia de biogás, que multiplicado por 1.5 a 2 kW/m3 de biogás são em torno de 20 milhões de kW que são gerados diariamente, com a vantagem de que já se encontram distribuídos de forma descentralizada. Temos que concordar que uma das grandes revoluções do futuro é energética. A produção descentralizada pode gerar maior autonomia para as pessoas e a menor dependência das grandes corporações pode ajudar em outros processos libertários individuais e coletivos.

Revista GEA: De que forma seria possível integrar diferentes unidades descentralizadas de biotratamento, e quais as vantagens desta integração? Existe alguma experiência neste sentido?

Fachini: As experiências com unidades descentralizadas de saneamento fazem parte dos estudos do PROSAB, de uma coleção de manuais da CETESB da década de 80, em São Paulo. Ou seja, existe uma concordância entre os pesquisadores que esta modalidade vem de encontro às necessidades atuais. As vantagens desta integração estão na possibilidade de minimizar os custos, mas sobretudo na possibilidade do reuso energético local. Temos experiências bem recentes na Republica Dominicana, como uma indústria de café. Os resíduos produzem energia elétrica local para o beneficiamento de café de exportação, e outra experiência em comunidades no alto das montanhas que juntam resíduos humanos, de pequenos animais e do processamento local de café, gerando biogás suficiente para consumo de 80% dos moradores da comunidade. Isto não é possível quando se utiliza somente dejetos humanos, mas com a integração dos diferentes resíduos aí sim, o retorno é bem mais significante.

Revista GEA: Quanto gás seria possível gerar em uma casa com cinco moradores, por exemplo?

Fachini: Pela literatura, as estações convencionais de tratamento de esgoto podem gerar de 5 a 20 litros de biogás por habitante por dia. Em nossa experiência prática, onde o esgoto vem misturado com outras águas, a geração gira entorno de 30 litros de biogás por pessoa por dia, e onde o esgoto vem separado de outras águas temos uma produção medida de 50 litros de biogás por pessoa por dia. Então é possível gerar ¼ de m3 por dia de biogás por família. Parece pouco, mas isto permite uma chama queimando diariamente por 1 a 2 horas em queimadores de fogão domiciliar.

Revista GEA: Existe algum inconveniente na construção de biossistemas em áreas urbanas?

Fachini: O que existe é a dificuldade pela falta de espaços, mas isto vale não só para os biossistemas. A valorização cada vez maior do m2 de áreas urbanas desumaniza os ambientes e as pessoas, tornando caótico o trânsito, o ar que se respira, aumentando o stress de todo mundo, e finalmente tornando a vida mais cara para todos. O ideal é que os espaços sejam previstos antes que os empreendimentos sejam implantados, e assim possamos manter as áreas que possibilitem uma melhor qualidade de vida. Não por acaso é exatamente esse o conceito de saneamento ambiental proposto pela Organização Mundial de Saúde.

Revista GEA: Se uma casa de apenas cinco moradores gera tanto gás, imaginamos o potencial de um edifício, seja ele residencial, ou comercial, ou até mesmo público. É possível construir biossistemas, ainda que em versões mais simples, em áreas urbanas como São Paulo?

Fachini: Sempre é possível tratar uma grande parte do esgoto gerado o mais próximo da sua origem. Custa muito menos transportar água previamente tratada do que esgoto não tratado. Os edifícios e condomínios, muitas vezes gastam valiosas somas com irrigação de jardins e aquecimento de água. Tudo isto poderia ser poupado com tratamento e reaproveitamento local, destinando como efluente somente o que sobrar da água tratada. Hoje o comum é que se faça justamente o contrário.

Revista GEA: Além de receber os dejetos humanos, que outros materiais poderiam ser direcionados para o biotratamento? Qual a vantagem dessa adição?

Fachini: Além do esgoto humano podem ser adicionados resíduos de pequenos animais em áreas urbanas e rurais. Em áreas urbanas todo o descarte de sobras de frutas e vegetais pode ser usado para aumentar a produção de biogás, tanto triturado quanto na forma de “água mel” que é quando se deixa as sobras por algumas horas numa jarra com água, e esta água se envia depois para o biodigestor. Também a lavagem de utensílios de cozinha, desde que feito com sabão neutro, podem ser enviados para o biodigestor aumentando a produção de biogás. Ao contrário do que se pensa, as gorduras são facilmente quebradas nos biodigestores e responsáveis por produzir um volume bem maior de biogás.

Revista GEA: Nós falamos bastante sobre tratamento descentralizado e projetos de pequena escala. É possível desenvolver biossistemas em larga escala? Existe alguma experiência recente do OIA neste sentido?

Fachini: Diria ser possível fazer projetos em larga escala principalmente para pequenos municípios, comunidades organizadas, condomínios, e produtores agrícolas em geral, em razão da quantidade de resíduos e nutrientes que podem ser reaproveitados. As indústrias com grandes quantidades de resíduos orgânicos, as agroindústrias, podem fazer uso de biossistemas para sanear e gerar mais trabalho aos que vivem próximos de suas unidades de produção. A cervejaria de Fiji, citada por F. Capra no seu livro Conexões Ocultas é um bom exemplo. Temos um projeto aplicado em escala comunitária e comercial na Nicarágua, onde primeiro saneamos o habitat humano e depois os resíduos do processamento do café. O projeto iniciou com uma empresa e na seqüência várias outras seguiram implantando o mesmo sistema. Hoje os trabalhadores e a equipe técnica da Nicarágua está replicando o mesmo projeto na Republica Dominicana com ampla participação de comunidades, empresas, setor privado, setor público e universidades. Aqui, este ano implantamos um piloto no COMPERJ (Complexo Petroquimico do RJ), o primeiro em uma unidade da Petrobras no mundo. Nossa expectativa é que ele seja avaliado e possa futuramente ser replicado em escala maior.

Mais informações:

O Instituto Ambiental:

www.oia.org.br

Fundação ZERI:

www.zeri.org.br

*Gui Castagna - Proprietário da Livraria Tapioca, integra conceitos de permacultura em sua formação de engenharia civil, desenvolvendo projetos de design ecológico e sustentabilidade em água, de empreendimentos comerciais a projetos residenciais, incluindo a capacitação de comunidades tradicionais e de baixa renda.

1 O reino Monera compreende todos os organismos unicelulares e procariontes, representados pelas bactérias e pelas algas azuis ou cianofíceas.

2 Biodigestores são recipientes estanques que recebem um dado efluente e promovem redução na carga orgânica pela ação de atividade microbiológica anaeróbica (sem oxigênio), onde o gás metano é gerado como um subproduto.

3 Plantas que habitam ambientes úmidos ou alagadiços, podem ser flutuantes ou emergentes. São notórias pela sua capacidade de filtração de água, fruto de uma simbiose entre suas raízes e as bactérias que nela se alojam atraídas pelo alto índice de oxigênio dissolvido presente em seu entorno, e que degradam a matéria orgânica local transformando-a em nutrientes assimiláveis pelas plantas. Dentre elas encontram-se a taboa, junco, papirus, aguapé, azola e tantas outras.

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